CHUVA NEGRA
Por Vinícius Santos
Capítulo 4
No escuro das entrelinhas
Na mesma hora em que Marrie gritava no beco transversal à Rua de Lille, Julian estava acordando, sentindo-se ainda tonto devido às doses exageradas de conhaque que tinha tomado na noite anterior. Foi cambaleando até o banheiro, derrubando o copo ainda meio cheio que estava na mesa de centro. Sua face pálida no pequeno espelho lembrava um fantasma, seu bafo ainda era amargo por culpa da bebida. Lavou o rosto por duas vezes, mas nada parecia melhorar aquela aparência fúnebre. Pelos céus, que dias são esses? A ressaca emanava no ar um cheiro tão desagradável que lhe dava náuseas. O apartamento de Julian mais parecia uma cela, apenas uma sala conjugada com uma cozinha (era até um exagero chamar aquilo de cozinha), um quarto e um banheiro. Um velho rádio, uma poltrona surrada e um aparador dividiam o pequeno espaço da sala com vários livros, pilhas e mais pilhas, que estavam inclusive no chão, onde alguns serviam de calço para a velha poltrona. De novo mesmo, só um sofá e um aparelho de telefone, luxos que ele se permitiu nos últimos tempos. Aquele cortiço, por mais desajeitado que fosse, era um lugar aconchegante: a poeira que pairava no ar e os livros espalhados por cada canto, concediam ao lugar ares enigmáticos de uma biblioteca esquecida.
Eram 7 horas da manhã, Julian ia preparando um generoso bule de café, quando o telefone tocou. Não poderia ser uma ligação mais imprópria e infeliz, aqueles toques da campainha antes das palavras pronunciadas pela pessoa do outro lado, se transformariam numa melodia sinistra tão aterrorizante que atender ao telefone nunca mais seria a mesma coisa. Era o Dr. Chandau, chamado de doutor mais por respeito do que por ter um doutorado, era o dono do jornal:
- Bom dia Julian, espero que esteja sentado e já tenha tomado uma boa xícara de café. – Essas poucas palavras já estavam tão carregadas de más notícias que Julian congelou no mesmo momento. – Aconteceu algo nessa última madrugada...
O escritor escutou aquela história, já sentindo seu sangue deixar de fazer pressão nas veias. Quando Chandau terminou de falar, sugerindo que ele fosse o mais depressa possível para o jornal, Julian já estava torvado, apenas no automático, respondendo as coisas no telefone subconscientemente. Mergulhou naquele sofá novo de camurça e sentiu-se a pessoa mais impotente do mundo. Um dos seus poucos amigos fora assassinado brutalmente na noite anterior, enquanto ele babava na sua camisa um conhaque tão podre quanto as suas histórias. Quis rir, mas não havia graça, era mais um riso desesperado, um desespero que já lhe apontava na mente o cruel e macabro assassino de Oscar. Sentiu-se culpado, delirando, achando que ao pedir que ele pesquisasse sobre o antigo laboratório, o fizesse (tirei o ele) fazer parte da história. Mas não fazia sentido, no conto que Julian escreveu, não havia nenhum laboratório militar, Baltazar era apenas um serial killer, era apenas um personagem. Ele não existia! Não existia! Tentou se agarrar nisso, mas as marcas e as dores no seu pescoço ainda lhe provavam o contrário. Não conseguia pensar em mais nada, apenas apanhou seu casaco e seguiu em direção ao Jornal, para ir ao encontro do gran finale do espetáculo de horror da última madrugada.
Chegando ao cruzamento da Rua du Bac com a Rua de Lille, da esquina, Julian já viu o movimento frenético da multidão de curiosos e espectadores na frente do jornal. Se não fosse a presença massiva dos policiais, aposto que a maioria das pessoas estaria naquele beco, onde Oscar foi morto, vendo aquela cena, como se fossem críticos de arte analisando uma galeria medonha. Julian respirou fundo e seguiu o caminho até o cordão de isolamento, um número excessivo de policiais veio lhe repreender, achando que era só mais um curioso tentando tirar uma casquinha da situação, até que Dr. Chandau o viu e veio em sua direção:
- Senhores, esse é nosso redator, trabalha no jornal. Deixem-no passar, provavelmente a inspetora vai querer lhe fazer algumas perguntas também. – Falou Chandau tentando apaziguar a situação.
Os policiais se olharam, sem esboçar concordância com aquilo, mas no final, acabaram cedendo.
- Bom que você veio, Julian. – Disse Chandau. - Ainda estamos em choque, mas nessas horas é que precisamos ser fortes. Venha, vou te levar até a sala em que a investigadora está tendo uma conversa com o pessoal do Jornal.
Julian apenas concordou com a cabeça, sem dar muita importância e seguiram até a porta do jornal. Lá estavam elas: as manchas de sangue, espalhadas por todo lugar. Uma cena se formou na cabeça do escritor, tentando imaginar como tudo teria acontecido. Tais cenas eram freqüentes na maioria dos seus contos e livros. Estava ali, parado a observar aquela trilha até o beco, exatamente como Marrie algumas horas antes. Não dando atenção aos conselhos de Chandau para não ir até lá, Julian começou a caminhar, precisava ver pela última vez seu amigo, mesmo sendo numa imagem horrenda. Havia muitas pessoas lá: legistas, policiais, investigadores, peritos... E mesmo assim, ninguém o parou. Na entrada daquele beco, já era possível ver os sapatos de Oscar, a luz do dia já iluminava todo o lugar. Lá estava, seu velho amigo, morto como um cachorro, talvez até pior que um cachorro.
Seguiu aquele caminho grotesco até ficar face a face com o horror. O que viu, travou seu corpo, como um choque térmico. Agora sua suspeita estava confirmada, todo aquele cenário só poderia ser montado por uma pessoa. Ou um monstro. Aquele jeito de matar, quebrando o pescoço, a forma como deixou o corpo, meticulosamente para esboçar toda a fraqueza da pessoa na hora que o medo toma conta, tudo aquilo tinha uma assinatura de um artista infame: Baltazar. Só uma coisa não condizia com a história. Aquelas três cruzes reviradas, marcadas na testa de Oscar não eram uma marca do serial killer. Por um instante, Julian lembrou-se de algo. Botou a mão em seu casaco e tirou de lá o envelope que recebera no dia anterior. Ali estavam, as mesmas três cruzes desenhadas grotescamente. Aquilo era um aviso: a morte, as marcas, tudo. Tudo era um sinal para Julian, para dizer que Baltazar estava por perto e que logo chegaria até ele.
- Bem, não se deixe levar por essas cenas, só estaria dando razão para o assassino. – Disse uma voz feminina, firme e concisa. - Você deve ser Julian Bane, o escritor que trabalha no jornal, correto?
A pessoa que Julian viu ao virar-se era o perfeito contraste com aquele cadáver. Um ser tão belo e fascinante que se fosse um quadro tomaria com facilidade o lugar de honra da Mona Lisa no Louvre.
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O Blog Tem Preguiça Não (www.tempreguicanao.com.br) orgulhosamente traz até você o conto “Chuva Negra”, escrito por Vinícius Santos. A cada edição de Terça-Feira do O Grande Jornal, você acompanha a história de Julian Bane, um Ghost-Writter decadente, que vê um de seus contos de terror tornar-se real numa madrugada chuvosa. Uma corrida desesperada começa e na sua trilha: um personagem nefasto de sua própria criação. O personagem principal conduz os leitores pela velha cidade de Paris no início do século XX, numa trama de suspense e aflição, onde o real e o sobrenatural envolvem-se misteriosamente.
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Sobre o Autor
Vinícius Santos nasceu em Imbituba, Santa Catarina, no ano de 1990. Escritor iniciante tornou-se conhecido por publicar esporadicamente seus textos na web e notumblr Boemia Letrada. Bastante influenciado por grandes nomes como Carlos Ruiz Záfon e Stephen King, busca resgatar o dom de contar histórias de suspense e mistério.
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