CHUVA NEGRA
Por Vinícius Santos
Capítulo 1
Aproveite o sol antes que seja tarde
Julian despertou de um sonho que o perseguia quase todas as noites: um homem vestindo um terno militar, acariciando-lhe a cabeça e se despedindo, caminhando de encontro a figuras grotescas num túnel escuro. Já eram três horas de uma quarta-feira ensolarada. Os feixes de luz que entravam pela janela, entorpeciam sua visão. Sabia que aquele não era seu quarto, ainda que aquele lugar fosse familiar. Era o dormitório pertencente à Igreja de La Madeleine, o mesmo ambiente acolhedor no qual ele passou boa parte dos seus 22 anos de idade. Aproximou-se da janela e deixou por alguns minutos aquele calor do sol dar-lhe vida. Observou lá embaixo, havia uma calma momentânea na rua. Paz que não estava ali alguns anos atrás. O término da Grande Guerra deixou a cidade sob uma nuvem de poeira cinza, carregada de dor e tristeza, que mil tardes ensolaradas como aquela não conseguiriam apagar de sua memória. Ficou feliz pela tempestade ter ido embora e foi então que as lembranças do dia anterior voltaram ao seu pensamento, gradativamente. A paz sumira do ambiente à medida que se lembrava da noite em que quase perdeu a vida. Não tinha sido só sonho, não poderia ter sido. Poderia? Sua cabeça girava num redemoinho de perguntas.
Igreja de La Madeleine, França
Deu voltas dentro do quarto, levou a mão ao seu pescoço e como num choque percebeu que estava realmente machucado. A imagem que vira no espelho era a prova que aquilo tudo não tinha sido delírio: marcas enormes circulavam sua garganta. Sentiu suas pernas cambalearem enquanto suas têmporas latejavam feito tambores. Antes que desmaiasse novamente, sentou-se na beirada da cama e se curvou sobre os joelhos. Aquelas cenas horripilantes percorriam sua mente, tão reais que ainda podia sentir o baforejar quente e fétido de Baltazar. Lembrou-se do homem que o resgatou, juntou na sua mente os fatos. Se toda a sua história estivesse de fato viva, aquele seria o Inspetor de Polícia Georges Barthou, o caçador do assassino. Nada e tudo faziam sentido.
No fundo do quarto, escutou o mecanismo do trinco mexer e a velha porta se abrir. A imagem que apareceu não poderia deixá-lo mais feliz.
- Eu lhe daria bom dia, mas já é quase noite de novo. – Falou num tom de sarcasmo, embora ainda fosse dia.
O Padre Leon foi seu mentor e a figura que Julian tomou como pai. Era um homem de semblante calmo, já grisalho por culpa dos seus 62 anos de idade. O típico servo de Deus, adorável e afetuoso, que toda igreja merecia ter. Ele trazia consigo uma bandeja repleta de comida - quase um banquete, principalmente para aquele pobre escritor que não tinha uma refeição descende há dias.
- O que aconteceu com você na última noite Julian? Andou se metendo com outra dama da alta sociedade e algum marido ciumento lhe sentou a mão? - Alfinetou o Padre enquanto Julian devorava um croissant.
- Eu ainda não tenho nenhuma resposta do que me aconteceu, padre. - Respondeu ele ainda de boca cheia.
- Quem sabe se você voltar ao bar da última noite você descubra, não? - Alfinetou mais uma.
- O senhor sabe quem me deixou aqui na última noite?
- Não faço idéia. Quando eu abri a porta vi você jogado no chão e um homem caminhando ao longe, afastando-se naquela chuva sem fim, exatamente como naquela noite que você chegou até mim, há 16 anos... Mas, ontem, se os outros padres não tivessem me ajudado, você ainda estaria lá naquela porta.
Julian sorriu gentilmente.
- E ainda não recebi uma boa explicação de como você chegou até aqui. – Insistiu o padre.
- Acredite, estou mais cheios de dúvidas que você.
Um silêncio de alguns segundos perpetuou o quarto.
- Bem, acho bom ir embora, antes que você tente me converter num adorado cordeiro de Deus. - Satirizou Julian.
- Tudo bem – concordou Leon – e espero que o Senhor não escute minhas palavras, mas cuide desse seu rabo, por favor!
Julian ia descendo a Praça da Concórdia rumo à Rua de Lille, onde ficava a sede do quase falido Jornal “Gazeta de Bourbon”, no qual ele trabalhava editando algumas colunas. Pensou em ir até a polícia, mas já estava horas atrasado para o trabalho, e antes de tudo, teria que escapar da ferrenha secretária, madame Marrie. Quando o escritor apontou na porta do prédio, a megera metralhou-o com um olhar de desgosto:
- Como sempre, horário não é seu forte, não é mesmo, Senhor Julian. - Disse a secretária.
- Diferente da sua beleza, que é um alívio para meus olhos, minha cara Marrie. - Respondeu ele com um ar carregado de sarcasmo.
- Não posso dizer o mesmo! Agora pegue aqui suas “cartinhas” e suma da minha vista!
Julian sorriu displicentemente e com um comprimento militar, bateu em retirada. Enquanto subia as escadas, folheava sua correspondência. Somente cobranças. Exceto uma. Aquela carta chamou sua atenção: no lugar destinado ao remetente três cruzes desenhadas de cabeça para baixo. De dentro do envelope - com o timbre de um laboratório chamado “Laboratoire de Génétique Militaire St. Germain” - não poderia sair nada mais intrigante e obscuro. Uma foto recortada por chamas e manchada de vermelho com a imagem daquele homem vestido de oficial militar. Tinha agora, em suas mãos, aquilo que atormentava frequentemente seu sono.
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O Blog Tem Preguiça Não (www.tempreguicanao.com.br) orgulhosamente traz até você o conto “Chuva Negra”, escrito por Vinícius Santos. A cada edição de Terça-Feira do O Grande Jornal, você acompanha a história de Julian Bane, um Ghost-Writter decadente, que vê um de seus contos de terror tornar-se real numa madrugada chuvosa. Uma corrida desesperada começa e na sua trilha: um personagem nefasto de sua própria criação. O personagem principal conduz os leitores pela velha cidade de Paris no início do século XX, numa trama de suspense e aflição, onde o real e o sobrenatural envolvem-se misteriosamente.
Confira toda Terça-Feira no O Grande Jornal
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Sobre o Autor
Vinícius Santos nasceu em Imbituba, Santa Catarina, no ano de 1990. Escritor iniciante tornou-se conhecido por publicar esporadicamente seus textos na web e notumblr Boemia Letrada. Bastante influenciado por grandes nomes como Carlos Ruiz Záfon e Stephen King, busca resgatar o dom de contar histórias de suspense e mistério.
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Fonte da Imagem: AGU
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